domingo, 29 de julho de 2007

PARES

Assim como a ave que corta a paisagem íntima do dia
também eu
convicto de mim em nada
caminho palavras antigas de amor
como se assim fosse possível viver.
Assim como o tempo se corta em dois
laranja da tarde
o sol mais claro das manhãs
assim também espero o beijo que acorda o pássaro
e faz renascer
o que não renasce nunca.
Assim também me esqueço em poemas invisíveis
como se assim fosse possível jurar por mim.
Não sei do aceno que se perdeu
mas espero amanhecer:
isso é tudo.

Sabes da tarde
mas não é tudo.
Saberias mais, fosse o dia assim tão infinito
ou fosse o dia o nada absoluto,
sabes da tarde entardecendo em mim anoitecente
como se assim fosse abrir uma janela
ou ver a face quase invisível no que não há.
Sabes sim do amanhecer
da ave
da palavra esquecida na boca.
Sabes, mas não tudo.
Só o possível saber do corpo
da possível dor
do beijo perdido no lábio
do aceno quieto na mão.
Não sabes do entardecer
esse momento de andar sempre
como se não andasse
e de calar
como se não fosse assim.

Pálida a luz do dia
e ainda não sei.
Calar por dentro é mais difícil
antes de renascer o gesto.
Dentro de ti
onde dormem os pássaros
e vivem os peixes do tempo.
O oceano de agora é pouco
e não me basta.
Nada basta ao aceno que corta o ar
a cama o dia a sombra
o que amanhece e não se vê.
Dói o que não é dor
mas apenas passagem de percorrer caminhos.
Nada em mim ou em volta do que existe
senão a descoberta
o que se faz
o que se fala
o que se vive.

tempo aberto ostra
guarda-chuva o céu é tão pequeno
tão pequena a tentativa de viver
que tudo se perde.

não:
morre a planta da palavra
e eu me esqueço de respirar.

assim não te vejo
nem sei se estás.


Álvaro Alves de Faria




COMO RUMÎ

Move-te o universo
e ele espera.

Senta-te ao pé da fonte
e espera.

Veste tua outra túnica
e sê visita de tua casa.

A vida despe andrajos
e te dá novo corpo.

Move-te a tua voz,
teu vento.

Anda pela vida em par,
para que não sejas sozinho.

Nova York, Aeroporto JFK, sábado, 20/04/2002 – 21h59 – Embarcando para o Rio


A PEDRA, O LIMO
para Carlos Felipe Moisés

Me surpreende
a fala.

Por onde passo,
revisito o ser
que sou
e ocupo o espaço,

portanto,
mudo e transformo
canto em palavra

para que vertam
os versos
como água.

Colhe a pedra
do rio
e espera o limo.

26/04/2002 – 23h07


VERDE POEMA

Senta-te um pouco
para esperar.

Nada se acelera
com tua pressa.

Vê a pausa entre as coisas,
porque todas formam arcos
numa arquitetura
engraçada.

Desce o olhar sobre tudo,
de tua varanda,
da janela aberta,
do pátio silente.

E espera se desprender
o poema
de onde se oculta.

27/04/2002 – 10h43


OXI-TONO

Nada vive sem sua hora.
O fardo ou a escolha.

Teimo em estar, mesmo só.

O mais longo dos dias
ainda está por começar.

Olha pela fresta a paisagem
e vê o que deixaste de fora.

Nada se perde em tua ausência.

Onde não estás,
te espera.

27/04/2002 – 13h55


TOMANDO CHÁ

Acordo.
O vento
move minha alma
e me faz sonhar.
Subo e desço.
No entanto, sei que as almas
foram feitas para vagar.
Sopros tolos.
Tudo pára
e o vento se move.
Céus.
Quanto mais profundo o amor,
mais calmo será.
Aquiete-se.
E terá alegria.
Pare.
E encontrará descanso.
Não pense.
Apenas uma benção pode ser vista
e ouvida.
Não duvide.
O sopro imóvel
sussurra no silêncio.
Ouça:
o amor não produz nenhum som.

Nova York, 18/04/2002 – 21h05
Starbuck’s Coffee 5th Ave x 33rd St. ao lado do Empire State Building
(tradução)


HÁ UMA LUA

Há uma lua dentro de cada
ser humano, diz Rumî.

E assim ela brilha, pois o sol a ilumina.

Deixemos que a lua seja, sempre mudando seu rosto,
um suspiro de adeus e o frescor do orvalho.

Veja que maravilha é o Homem. As estrelas se movem
por causa dele e, ele, por causa das estrelas.

Possam os céus existir enquanto ele viver.

Rio, 24/04/2002 – 18h10
(tradução)


A CLARICE

A vida não começa
no primeiro passo.

Começa no segundo,
quando aprendemos
o equilíbrio
entre este instante
e o outro.

Começamos o segundo movimento
apenas com a certeza do primeiro.

Então, a vida começa,
por ser inevitável.

Letras e Expressões, 4/04/2002 – 19h33
Véspera do embarque para NY


VARREU-SE A TERRA

Varreu-se a terra
e desci à outra entranha
fosca visitação de Hades
barco singrando o rio
levando o fardo escuro.
Braçadas de sortilégio
varrem-se as horas
das falas – o que foi será
sempre o olvido.

Rio, 26/04/2002 – 8h50



A IDÉIA DE TI
para Mano Melo

Serás, oposto aos mares, o que fui,
aquilo que vive e vibra,
oscila como um pêndulo,
mergulha reticente em tua memória
e te escuta.

És, perdido de tua casa,
a flâmula estendida aos céus
e vives a eternidade,
a idéia que tens de ti e de Deus.

Rio/Axé Santé/terça/7-05-02/23h35


ANTES, O VENTO
para Claufe Rodrigues

Antes
havia o vento
que revolvia os cabelos
e o olhar num horizonte
estático e penso,
um sinal de manhãs antigas
ainda esquecidas em teu rosto.

Antes éramos outros
e não nos lembrávamos de nós.

Hoje, sim.

Rio/Axé Santé/quarta/8-05-02/00h05


TEMPO

O tempo se espalha sob sombras e não somos mais nós mesmos.
Nossos desejos correm rio abaixo e vão além dos horizontes.
Os caminhos nos levam a nenhum lugar.
Fechamo-nos em nossas vontades.
As margens do tempo deixam passar nossa ânsia como brisas e luzes.
Selem as portas do amanhã.
Chegaremos de qualquer modo ao destino.

sábado, 18/05/02 – 14h44
(tradução)



PASSADO A LIMPO
para Tavinho Teixeira

Abençoa-te a morte, a farsa,
o mote a decifrar o pleno,
loquaz,
enquanto verte orvalho
entre teus dedos, tenazes,
com a cifra de ontem
a pagar o hoje.

Abençoa-te a tua casa,
a mãe, a família,
teu irmão que te fala,
oblíquo,
o que nunca esqueceste
e és.

Ouve-te a sombra e tua mão
é mais bela em seu dorso,
o côvado recolhido
a medir a arca.

Verás a vida de perto,
peixe no aquário, decerto,
como um cintilar de lâmina,
única voz viva no escuro.

Laça teu infinito na vastidão
que habitas.
Serás aqui o que sempre foste:
perene.

21/05/2002 – 22h21


A FRONTE DO IRMÃO
Beijo a fronte do irmão que, distraído,
esquecera do sangue que lhe corre
Tavinho Teixeira

O mesmo sangue que alarga as veias
e vem abundante jorrar sobre a testa,
sangue lama do cotidiano,
que não lhe basta.

Beijo a fronte do irmão que me toma a mão
e se esquece do rio que segue coração adentro,
voz feroz de um rugido que não pára,
outra mão que segura a minha.

Venho todo dia e lhe beijo a testa:
a frondosa vinha de seu sabor antigo,
sem amargor que lhe atravesse o peito
– só o olhar que me reconhece à espreita.

24/05/2002 – 00h11


TEU SONHO

Teu sonho é a carne alvíssima
de teu negror,
o verme de minha hora,
que passa
e não passo de outra aurora
além de hoje,
porque a hora, que é larga, me esquece
em sobressalto
e resto como ficam as mortes todas,
corpo esquecido
em sua fartura de nácar.

Me ouve, que desço ao colo
da mãe última,
a terra que é semente
e destino,
tarde celebrada e nua.
Visto olhos que não tenho
e a vala de teu desejo te toma.
Vai outra vez ao desterro
e embriaga-te uma vez mais
de desassossego.

22-24/05/02 – 18h48-1h29


POEMA DO CAFÉ

Colheres e xícaras bem pequenas,
em que bebemos sem pensar,

grãos torrados e moídos tomam
a forma líquida e derramam-se,

uniformes, água benta e escura
de um ato de comunhão.

Bebemos café, juntos ou sozinhos,
num gesto de contrição.

Comemos o pão, o biscoito
e damos lugar ao pensamento.

O café nos convida a sonhar.

Como meu avô, que de um grão
fez uma máquina,

daquele que o plantava na colheita,
sacas e mais sacas de riqueza,

o aroma antigo a nos visitar a toda hora.

Bebe com o café a nossa história,
de uma terra que tem nome de planta,

um ardor que está no fogo e na fumaça,
na paisagem imutável de outras eras.

Desce ao chão do tempo e colhe os grãos
no terreiro de café, as negras mãos.

Verte o espesso caldo de irmãos,
que juntos bebem e juntos sonham.

Rio, 24 de maio de 2002 – 10h20 – Dia do Café


DEMORADA HORA
Vaga-lumes em tua língua
quando em meu ouvido,
esclarece o mistério.
Tavinho Teixeira

Mistério que se mistura
ao que se ilude, onde
farta, a mão não mais sacia.

Pêlo de teu peito, arredio,
esconde a lavra tardia de hoje.
Vela os dias como ontem
e não te esqueças de voltar.

Vertem as frias ondas em teu dorso,
dançamos a viração das marés,
lambendo as faces de carmim.

Minhas quedas d'água te inundam
os charcos de tua demorada hora.

25/05/2002 – 3h35


POEMA DE LUA CHEIA

Molho as mãos nas águas do rio,
sinto o arrepio das gotas pelos meus dedos
e lembro de outros dias menos lentos.

Ó, Heráclito, em qual dos teus rios devo banhar-me?*

Rio de mil correntezas, onde o mar, que me aguarda?

25/05/2002 – 3h53 / 26/05/2002 – 2h43 / 15h19
(*verso de Tavinho Teixeira)


VEZES

Me perco em tuas profundas ranhuras
teus dentes dilacerando o caos
fonte de males e fomes
meus tantos lances arrebatados e escusos
nada diante do pedestal.

Nada sei de tuas penumbras e entranhas
ser lancinado em azul
sombra projetada sobre sobrados
de varandas esquecidas no escuro.

Volto tantas vezes meus olhos para onde estás.
São lentos os passos e a viagem longa.

Nada tinge o cetim.
Vidas incólumes, até que se comece.

27/05/2002 – 11h47



ODE AO OCASO
para Christóvam de Chevalier

Construo uma ode para teus pequenos risos

a curva de teu ombro
a pele fina

contorno maleável
incandescente

o verso porejando imagens
a vida posta em tuas mãos
em viagem.

Não resisto outra vez
construir teu lábio

a floresta espessa de teu pensamento
a nau circunscrevendo a ilha

a foz de tua garganta
vertigem

a noite enrubescida em tuas
clarabóias descobertas

a passar os dias a navegar as horas,
doce tempo de tua voz silente,

véu de ocaso e vastas vidas.

Rio, 10/05/2002 – 16h15


DIA DA QUEIMA
"Nem todo ser me desperta a fala".

Todos os dias tornam-se libelos,
traços rasgados de puberdade,
laivos e arroubos de uma catedral aérea.

Já fui louca, já fui santa
e hoje pairo acima das nuvens
como deusa apocalíptica das guerras.

Que outra santa guerreou?

(Hoje, dia em que Joana queimou
na fogueira como bruxa
há mais de 500 anos,
a justiça é redimida e parca.)

As mesmas preces são ditas,
os mesmos anjos acodem,
as mesmas vozes falam
dentro de minha cabeça
e não estou louca.

Falai, falai comigo!
Eu, Joana, vos ouço.

30/05/2002 – 14h04


VASTO CORAÇÃO
para Fernando Fiorese

Um pêndulo oscila, como em um relógio,
marcando a passagem do tempo.
Enquanto vai e volta, o olhar descansa
em sua imagem móvel, dando lugar ao sonho.

Não se apresse nem nada tema.
Tudo tem sua hora e seu modo.
Se o coração se aquieta, deixa-o.
Se ele se enternece, acredite-o.

Aprenda com ele a viver.
Batidas compassadas, idas e voltas,
e pausas.

A vida cabe no coração e o coração, na mão.
Ele e teu punho fechado têm o mesmo tamanho.
O que cabe em tua mão?
É a mão que estendemos
e com que amparamos o amigo
e no coração guardamos os maiores amores.

Todos cabem, como caberiam dentro da mão.
Que vasto é o oceano que passa pelo coração.

1/06/2002 – 13h53

TARDE
A saudade adoece tua imagem,
desenhada em nuvens, nessa tarde.
Victor Farinha

Descem, abismais, sobre mim, as nuvens
e teu corpo,
detendo-me, as mãos sobre meu rosto,
deslizando por mim,
tua respiração e teu fôlego,
um céu fosco que se apaga lentamente,
enquanto cerro os olhos.

Incrusta-me nesta hora em que tudo cessa,
cede-me a mão e teu ouvido,
despe o torvelinho de um instante
e pousa sem me veres ou esperar-me.

O tempo corre entre as margens
do dia, que desperta.

5/06/2002 – 2h53



A LÁGRIMA
Não te beijarei
pelos teus olhos
Tavinho Teixeira

Te beijarei por tua boca
que contém o maná
dos deuses derramado
por tuas sílabas.
Recolherei as palavras
de tua língua
e teus beijos terão o gosto
de favos
depositados ao pé
do Ararat.
Tudo principia em teus lábios
e continua em teus olhos
a verter a lágrima
que sorvo de ti.

6/06/2002 – 17h14


O QUE ÉS
Serás o que já és e o que eu sempre soube.
Mano Melo

Se sou o que me tornei
e és o que sempre foste,
quando me tornei mais?

Quando, sem me dizer,
te tornaste o que és?

A eternidade pousa
a teus pés
– pássaro amanhecido e ermo.

Seremos o que já somos
e nunca soubemos.

12/06/2002 – 3h18


HABITAT

Tua casa te habita.
Veste teu véu e forma um arco de vigas góticas.

Verte o olhar em voo
de vastos aléns e horizontes próximos.

Nada te vigia a hora
e tudo está côncavo e oco.

Vagas por caminhos outros
que traçam passos que se cruzam.

Tu e tua casa se pertencem.

Pertencem a ti e a todas as coisas
que vivem.

12/06/2002 – 4h53



TECER

há surpresas
que se escondem
a cada dia.

há vidas que crescem juntas
como veios
de um mesmo seixo.

vivemos
e crescemos
como heras no muro
tecendo a mesma superfície
pura.

12/06/2002 – 23h05



MARALTO
para Fernandinha Correia Dias

Cobre os oceanos
com teus cantos,
sereia núbia,
ninfa grega,
deuses curvam-se
e abrem mares
à tua passagem.

Tece o manto com
que envolves o amado.
Ata-o à erva que cresce
no caminho.
Toma-o, por te dares
e deixa-o ser, febril e mítico,
a harpa de tua voz.

Rio, 13/06/2002 – 14h06


RUMO
Preparava, desapercebido, talvez,
os sulcos sobre a terra,
arado ceifando a rima
que o próprio braço esmera.

Tavinho Teixeira

Toma minhas feridas,
fendas que não cicatrizam,
risos guardados em livros,
emudecidos e imersos.

Toca a música que ouço,
spala de minha orquestra
stacatto
ma non troppo.

Demora-te em mim,
trava comigo a batalha,
escreve a palavra
seca no papel.

Canta a última vez,
fados, lamentos, cantigas
e ouve, no eco,
a canção esquecida.

Rio, 17/06/02 – 1h54



COMUNHÃO

Te ergui,
como te ergo em solilóquio,

fausto, imantado relevo,
veios de altares e silêncios,

cosmos em volta de teus dedos,
lúdico caos em louvor,
flamas que orbitam,

pequenos trapézios
circunflexos,
mandalas múltiplas,

vácuos onde precipitam
horas – dízimos, palavras
suspensas.

Ergo-te em cálice
e em ti cabem milênios.

27/06/2002 – 23h55


PROMESSA

Prometo ser a primeira
a esquecer qualquer mito,
magras mãos a tocar os braços,
sustentando, antes de ser o último,
o verso vivo arrancado da carne.

Deixo que os olhos se percam
ao longe, para me trazer o que
abandonaram à míngua.

3/07/2002 – 14h04


A ETERNIDADE DO HOJE
A literatura, como toda arte,
é uma confissão
de que a vida não basta.

Fernando Pessoa

Esquece
a tarde, o dia,
a mó,
a vida sonolenta
que deixamos para depois,
a urgência de adiamentos,
natureza recortada em álbuns
de fotografias.
Esquece o sortilégio,
a guerra, porquê fazemos
tudo e deixamos para mais tarde.
Tudo é escasso e precário,
como a docilidade da esfera.
Não há poesia para o nada.
Só para o que contemos
em excesso.

11/07/2002 – 23h54


EM SEU NOME
para Luís

Em seu nome
há uma aurora,
um começo
de manhã.

Em seu nome
celebro a existência,
a vida opulenta,
carregada nos braços.

Em seu nome inscrevo
o meu, dia a dia,
para que nos restem
as noites célebres
em manhãs sempre
por vir.

12/07/2002 – 15h56



CÍRCULO

Basta-te a fome.
Ergues a mão
e colhes o fruto rompido.

Teus olhos contêm
a claridade maior
e o infinito que busco
nos versos que escrevo.

Leio as linhas de tuas mãos,
por onde correm cursos d’água,
veios de ouro em monolitos de jade.

Corre os olhos pelos livros
na estante.
Busca a palavra que queres
reter.
Cantos sem tua voz,
movimentos de mãos
conduzindo a música.

O tempo te ergue.
Já não és mais só.

20/07/2002 – 4h59



DÁ-ME

Dá-me o prazer
das pequenas coisas,
como se as tivesse tido
– mesmo sem poder tê-las,
como se as tivesse.

26/04/2002 – 18h45


O PRIMEIRO VERSO

Vivamos primeiro nós,
depois os que nos seguirem.
Vivamos a festa que se inicia
agora, por ser única.
Sempre estamos nos despedindo
e retornando.
Para um último, haverá outro,
que retome a fala onde nos
interrompemos.
Não tememos calar.
O silêncio será motivo
para retomar
a palavra.

4/08/2002 – 13h47


O TEMPO

O dia ficou marcado em seus minutos efêmeros.
Nada permanece diante do improvável,
hora despida, a longa despedida,
ainda os olhos de chuva mergulhando
na mais profunda noite.

Soube que virava as costas
para algo maior que a carne,
a vida entranhada que se comovia,
estancando a dor, prazer e descoberta.
Um deserto de outroras e fomes,
escavadas de um fosso andino.

Dedos marcados sobre a mesa,
a dobra do papel a guardar o sonho,
retido em um milésimo de segundo,
nenhuma nostalgia a tocar a alma,
nenhum verso para dizer depois.

Apenas o tempo que cortou o abismo.

7/08/2002 – 13h30



ESQUECE

Esquece
a dor e a chaga.

Fica onde deixou
aberta
a página do livro,
a semeadura dobrada de ontem,
distanciando-se das margens
do momento.

Deixa
que te visite o temor de não
seres meu,
por teres abandonado tua casa.

Nada restará do silêncio
assombrado de tuas horas.

Nada ficará para guardar,
pois não importarão os filhos.

És apenas hoje,
encontrado e só.

Tua memória, o que nunca
foste.

11/08/2002 – 13h59



POEMA LONGO

Nunca.
Na aparência de formas,
ecos passam sobre o asfalto
– boca entreaberta
e móvel –
esse curso de rio que deságua.

Move-te
mais em torno de ti
do que a terra à volta de
si.

Tudo que tentas, erra.
Erra a mão sobre o cajado,
as sandálias cheias
de pó.

Tocamos a água que se move
sobre o rosto de hera.
Mergulhamos.
Fonte de riquíssimos favos,
algodão sobre meus seios,
medula,
talho e ferida.

Deserto,
manto de quintessências
de tâmaras secas.

O esplendor dos olhos,
em seu desejo.

Verso revertido
à sua própria concha,
habitando o oco
sem preenchê-lo.

Bebe
outra vez de tua mão,
eólico esboço,
perfil,
a noite entrecortada
de sussurro.

Verte. Outra vez
a espera em teus degredos.
Flores no vaso
azul.

Espera. Nada.
Ninguém.

Nem mesmo a voz
que tens.

17/08/2002 – 23h17


A ESPERA
para Álvaro Alves de Faria

A palavra áspera,
dócil.
A palavra espreita,
como bicho a dar o bote,
o laço a apertar a fera,
amansada,
à espera.

22/08/2002 – 13h13



PRECISO

Não preciso
dizer
quanto amo
porque só é
preciso
amar.

Não preciso
te laçar
agarrar à
força
porque
te tenho
como punhal.

Não preciso
de nada
que não esteja
à mostra
e o que me
mostras
já o é.

Não preciso
de ti nem tu
de mim.

Precisamos só
estar aqui.

24/08/2002 – 3h01



IDOS DE AGOSTO

A máscara te moldou o rosto
antes de tua morte.
Eras prelúdio e epílogo.
Nenhuma caminhada te levou
mais longe do que tu mesmo.
Por isso foste pai dos depauperados,
enquanto a outra mão escondia
a maça.

Tudo que restou foi teu rosto
e dor.
O olho fechado a apontar o alvo,
o único tiro a tirar-te a vida.

Eras palavra e voz
e ergueste para ti mesmo
um túmulo.

Tua pátria se corrompe
em teu mar de lama.
A mesma chaga a roubar-te de novo.
Hoje és, o que se deitou
para se erguer em glória.

Os passos que conduziste,
agora conduzem a si mesmos.

Mais tempo houvesse,
mais tempo teria restado
para tua história.

24/08/2002 – 3h11


AS HORAS

Te visito hora pura
te rondo à beira do precipício

me movo
me visto ao avesso

atravesso
o deserto a vez imprecisa

oro minhas preces maduras

derramo
as gotas que me sobram

fenecem
noite e dia

porque tudo que é incerto
estremece.

11/12/2001 – 4h33